Por Rodrigo Haidar
O
Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quinta-feira (12/4), que a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo não pode sequer ser chamada
de aborto. Na prática, os ministros descriminalizaram o ato de colocar
fim à gravidez nos casos em que o feto não tem o cérebro ou a parte
vital dele, no que alguns ministros chamaram de o "julgamento mais
importante de toda a história da corte".
Por oito votos a dois, os
ministros decidiram que médicos que fazem a cirurgia e as gestantes que
decidem interromper a gravidez não cometem qualquer espécie de crime.
Para sete dos dez ministros que participaram do julgamento, não se trata
de aborto porque não há a possibilidade de vida do feto fora do útero.
Para interromper a gravidez de feto anencéfalo, as mulheres não precisam
mais de decisão judicial que as autorizes. Basta o diagnóstico de
anencefalia do feto.
O ministro Gilmar Mendes votou pela
descriminalização da prática, mas considerou, sim, que se trata de
aborto. Para o ministro, o aborto de feto anencéfalo pode se encaixar
nas hipóteses de exceção previstas no Código Penal em que o aborto não é
considerado crime — no caso, na regra que possibilita o aborto em caso
de risco à saúde da mãe.
Mas venceu a tese de que a interrupção de
gestação de feto sem cérebro não pode sequer ser considerada aborto.
Assim, o crime é impossível. O decano do tribunal, ministro Celso de
Mello, pontuou: “Não estamos, com esse julgamento, permitindo a prática
do aborto. Essa é outra questão, que poderá vir a ser submetida a esta
corte em outro momento. Se não há, na hipótese, vida a ser protegida,
nada justifica a restrição aos direitos da gestante”.
Prevaleceu o
voto do ministro Marco Aurélio, relator da ação em julgamento, para
quem “anencefalia e vida são termos antitéticos”. O ministro afirmou que
existe, no caso, um conflito apenas aparente entre direitos
fundamentais já que não há qualquer possibilidade de o feto sem cérebro
sobreviver fora do útero da mãe.
O que estava em jogo, disse Marco
Aurélio, é saber se a mulher que interrompe a gravidez de feto em caso
de anencefalia tem de ser presa. Os ministros decidiram que não.
Os
ministros se mostraram preocupados com a execução da decisão,
especificamente com a segurança do diagnóstico de anencefalia. O
ministro Gilmar Mendes propôs que o Supremo recomendasse ao Ministério
da Saúde que editasse uma norma de segurança para que o diagnóstico seja
seguro. A maioria, contudo, rejeitou a proposta após uma longa
discussão.
Crisálida ou borboleta
O julgamento começou na quarta-feira (11/4) pela manhã e foi suspenso no
começo da noite com o placar de cinco votos a um em favor da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ajuizada em 2004 pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS).
Retomado
nesta quinta (12/4), o primeiro ministro a votar foi Ayres Britto. Na
linha dos outros sete ministros, entendeu que não é razoável obrigar uma
mulher a carregar em seu ventre um feto cuja possibilidade de vida não
existe. Tampouco é justo colocar no banco dos réus aquelas que decidem
interromper a gestação nestes casos.
Segundo Britto, a gestação de
feto anencéfalo não passa de uma fraude, de “um arremedo de gravidez”. O
ministro ressaltou que não há normas que identifiquem o início da vida.
“À luz da Constituição, não há definição sobre o início da vida. É
estranho criminalizar o aborto sem a definição de quando se inicia a
vida humana”, afirmou.
O ministro não perdeu a oportunidade de
fazer seus já conhecidos trocadilhos. “O feto anencéfalo é uma crisálida
que nunca se transformará em borboleta porque jamais alçará vôo”,
cravou. “Se todo aborto é uma interrupção voluntária de gravidez, nem
toda interrupção voluntária de gravidez é aborto”, afirmou o ministro.
Em outro ponto do voto, disse que “sobre o início da vida, a
Constituição é de um silêncio de morte”.
Além de Britto e do
relator da ação, Marco Aurélio, votaram pela descriminalização os
ministros Rosa Maria Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia,
Gilmar Mendes e Celso de Mello. O ministro Gilmar Mendes fez diversas
ressalvas em seu voto e uma crítica ao fato de o relator não ter
admitido a participação de amici curiae no julgamento. Segundo Mendes, o
fato de o Estado ser laico não significa que não devam ser levados em
conta argumentos de entidades e organizações religiosas nestes casos. “É
preciso ter cuidado com faniquitos anticlericais”, disse.
O
ministro Marco Aurélio respondeu na volta do intervalo. Lembrou que, em
2008, foi feita uma audiência pública que durou três dias em que todos
os interessados se manifestaram, sem qualquer espécie de restrição. Ou
seja, houve a efetiva participação de interessados, inclusive diversas
entidades religiosas, no processo. Em seu voto, Marco afirmou que
“paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte da
condução do Estado”.
Depois de Britto, votou Gilmar Mendes. O
ministro trouxe dados que mostram que dos 194 países que fazem parte das
Nações Unidas, 94 permitem a interrupção de gravidez de fetos
anencéfalos. Na maioria dos países, disse, a discussão deu-se há mais de
uma década.
Em seu voto, o ministro Celso de Mello também
discorreu longamente sobre a importância de separação entre Igreja e
Estado. De acordo com o decano do tribunal, o Estado não tem e nem pode
ter interesses confessionais. “Ao Estado, são indiferentes os dogmas
religiosos. Temas de caráter teológico ou concepções de índole
confessional estão fora do alcance do poder censório do Estado. Daí
porque essa Suprema Corte não pode resolver qualquer controvérsia com
base em princípios religiosos”, disse.
Anencéfalo vive
Os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso votaram contra a ação.
Lewandowski fundamentou boa parte de seu voto no argumento de que o tema
é assunto para o Legislativo, não para o Supremo Tribunal Federal. “Os
parlamentares, legítimos representantes do povo, já tiveram tempo de
legislar sobre o tema e não fizeram”, disse Lewandowski. De acordo com o
ministro, “quando a lei é clara, não há espaço para interpretação”.
Lewandowski
afirmou que o juiz não pode contrariar a vontade manifesta do
legislador e o Supremo só pode exercer o papel de legislador negativo.
Ou seja, não pode criar novas hipóteses legais. Para ele, a permissão de
interrupção de gravidez em casos de anencefalia “sem lei devidamente
aprovada pelo Parlamento, que regule o tema em minúcias”.
Para o
ministro Cezar Peluso, não se pode admitir que o feto anencéfalo não
tenha vida. “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento
jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos
pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”,
disse. “O anencéfalo morre. E só pode morrer porque está vivo. Não é
possível pensar-se em morte de algo que não está vivo”, emendou.
De
acordo com o presidente do Supremo, o aborto de feto anencéfalo é
conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica. O ministro disse
que “não há malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética” que o leve a
considerar que interrupção de gravidez de feto anencéfalo não é aborto.
“Feto anencéfalo é sujeito de direito, não coisa, nem objeto de direito
alheio”, defendeu.
O ministro Dias Toffoli não participou do
julgamento. De acordo com seu gabinete, ele se declarou impedido por ter
trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor da ação, na
época em que era o advogado-geral.
Pequeno esquife
O julgamento foi marcado por frases fortes. “O útero é o primeiro berço
do ser humano. Quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida
se entorta”, disse a ministra Cármen Lúcia. A ministra fez questão de
ressaltar que o STF não está decidindo sobre o aborto, menos ainda sobre
aborto eugênico.
O relator, ministro Marco Aurélio, disse que na
classe A, os abortos são realizados com toda a assepsia. No caso dos
pobres, são feitos por açougueiros. O que indica isso, sustentou, é o
fato de hospitais públicos fazerem 200 mil curetagens por ano por conta
de abortos mal feitos. O ministro também frisou muito o fato de que a
permissão de interromper gestação de feto anencéfalo não é aborto.
“Existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto. O
feto anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Não se trata de vida
potencial, mas de morte segura”.
Em seu voto, o ministro enfrentou
o tema sob todos os ângulos possíveis: sociais, religiosas,
científicas, médicas e jurídicas. Marco Aurélio esclareceu que os
argumentos de que a decisão pode levar à permissão de abortos eugênicos
não fazem sentido. “afasto-os, considerado o viés político e ideológico
contido na palavra eugenia”.
O ministro fez uma clara distinção
entre pessoas que têm deficiências de qualquer ordem e a anencefalia. “O
anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo, não se pode
cogitar de aborto eugênico. Não se trata de feto portador de doença
grave, que permite vida extrauterina”, reforçou. Marco Aurélio também
fez uma longa distinção entre Estado e Igreja.
De acordo com o
relator, concepções morais religiosas, unânimes, majoritárias ou
minoritárias, não podem
guiar as decisões estatais, devendo ficar
circunscritas às esferas privadas. O ministro frisou que o preâmbulo da
Constituição – “sob a proteção de Deus” – não tem força normativa.
Marco
Aurélio sustentou que o estado é laico, mas não laicista. “A laicidade,
que não se confunde com laicismo. Laicidade é atitude de neutralidade
do Estado. Laicismo é uma atitude hostil”. Mas ressaltou que a
Constituição consagra a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. “O
Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é neutro”. E ainda
lembrou que ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover
qualquer religião.
O ministro também trouxe dados sobre
anencefalia no Brasil. De acordo com ele, os juízes já autorizaram a
interrupção de três mil gestações de fetos anencéfalos no país. O que
denota a importância de o Supremo pacificar a discussão. Segundo dados
da Organização Mundial de Saúde revelados por ele, o Brasil é o quarto
país em número de casos de fetos anencéfalos. A incidência é de um em
cada mil nascimentos, segundo os dados da OMS.
Marco Aurélio
também rechaçou a tese de que os órgãos do feto anencéfalo poderiam ser
usados para doação. “Se é inumano e impensável tratar a mulher como mero
instrumento para qualquer finalidade, avulta-se ainda mais grave se a
chance de êxito for praticamente nula”, disse, com base em dados que
mostram que os órgãos não são viáveis para serem doados. O relator
também trouxe, em seu voto, números que mostram que o risco à gestante
de feto anencéfalo é muito maior do que em outros casos.
Sem chance de vida
A ministra Rosa Maria Weber, em um voto longo em que contestou o fato de
que, muitas vezes, conceitos científicos são tomados como verdades
absolutas, e que confundiu muitos que vislumbraram um voto contra a
ação, também votou a favor. Rosa lembrou que “há relatos na literatura
de sobrevida de fetos anencéfalos por meses, até por mais de um ano”.
A
ministra também contou que recebeu a visita da menina Vitória em
Cristo, com dois anos e dois meses, e que ficou tocada. Vitória, na
verdade, não é vítima de anencefalia. Ou sequer estaria vida. Ela tem,
sim, uma deformação na caixa craniana. Ao fim, contudo, a ministra disse
que a anencefalia não é compatível com as características de
compreensão de vida para o Direito e considerou que a Interrupção de
gravidez de feto anencéfalo não é aborto.
Rosa Weber e Luiz Fux
fizeram críticas ao Legislativo. Moderadas, é verdade, mas não deixaram
de dizer que o Supremo só tem de decidir a questão por omissão do
Congresso Nacional. “A supremacia judicial só se instaura quando o
Legislativo abre esse espaço ao não cumprir sua função de representar o
povo”, disse Fux.
O ministro esclareceu que o STF evidentemente
respeita e vai consagrar o direito de mulheres que desejarem realizar o
parto de feto anencefálico. “O que se examina aqui é se é justo colocar
uma mulher vítima de uma tragédia no banco do júri”, afirmou. “Uma
mulher que terá o filho para assistir a sua missa de sétimo dia”,
completou.
Luiz Fux também disse que o aborto é questão de saúde
pública, não de Direito Penal. No caso da anencefalia, afirmou, “é o
punir pelo punir, como se fosse o Direito penal a panaceia de todos os
problemas sociais”.
O ministro Joaquim Barbosa também acompanhou o
voto do ministro Marco Aurélio. Barbosa lembrou que chegou a formular
um longo voto sobre o tema em outro julgamento, que foi interrompido
anos atrás pelo Supremo. Depois, o pedido de Habeas Corpus perdeu o
objeto porque o bebê nasceu antes da decisão do Supremo.
Aborto impossível
Antes do voto de Marco Aurélio, o advogado Luís Roberto Barroso, que
representa a CNTS, e o procurador-geral da República, Roberto Gurgel,
defenderam a descriminalização da interrupção da gravidez de fetos
anencéfalos.
Barroso afirmou que o tribunal decidira sobre o
direito que a mulher tem de não ser um útero a serviço da sociedade. Mas
de ser uma pessoa plena. O advogado ressaltou que todas as entidades
médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a
letalidade ocorre em 100% dos casos.
Para Luís Roberto Barroso,
não se trata de caso de aborto, que pressupõe vida, o que não é possível
em casos de anencefalia. O advogado ressaltou que obrigar a mulher a
carregar um feto que não tem expectativa de vida é violar sua
integridade física e psicológica.
“A mulher não sairá da
maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E
terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É
uma tortura psicológica”, afirmou Luís Roberto Barroso. O advogado
defendeu que o Estado não tem o direito de dizer como as pessoas vão
lidar com a própria dor e que a criminalização da interrupção de
gravidez de fetos anencéfalos é um fenômeno do subdesenvolvimento. “Nós
estamos atrasados. E com pressa”, disse.
Em referência a
declarações do ministro Ayres Britto, Barroso disse que se os homens
engravidassem, o aborto estaria permitido, não apenas neste caso, mas em
todos os outros. E lembrou que a discussão encerra um dramático
problema de saúde pública e discriminação das mulheres pobres.
“A
criminalização é seletiva, faz um corte de classe, penaliza as mulheres
pobres. Dia sim, dia não, morre uma mulher como consequência de aborto
clandestino no Brasil. E criminalização do aborto não diminui o número
de abortos”, sustentou. E completou: “Quem é a favor da vida, tem de ser
contra a criminalização do aborto”.
O procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, lembra que a PGR emitiu dois pareceres em
sentido contrário, o que revela a polêmica do tema. O primeiro foi
emitido por Cláudio Fonteles, quando este era o titular da PGR. O
segundo por Deborah Duprat, quando assumiu interinamente a
Procuradoria-Geral da República.
Gurgel endossou a posição de
Deborah Duprat. De acordo com o procurador, 65% dos fetos anencefálicos
morrem no período intrauterino. Os que sobrevivem, não passam de algumas
horas depois do parto. Na maioria dos casos, sobrevivem apenas alguns
minutos.
Ao final de seu voto, Marco Aurélio discorreu sobre os
direitos das mulheres. Para ele, o Estado obrigar a mulher a carregar um
feto que não tem expectativa de vida é intrometer-se em sua integridade
física e psicológica. Segundo o ministro, o ato de obrigar a mulher a
manter a gestação de feto anencéfalo coloca-a em cárcere privado em seu
próprio corpo. Assemelha-se à tortura. “Não cabe impor às mulheres o
sentimento de meras incubadoras ou caixões ambulantes, nas palavras de
Débora Diniz”, disse.
Depois do término do julgamento desta
quinta-feira, Luís Roberto Barroso afirmou que “a decisão do Supremo
Tribunal Federal significa o reconhecimento da liberdade reprodutiva da
mulher e dá início a uma nova era para a condição feminina no Brasil.
Quando a ação foi proposta, em 2004, o tema era tabu e o êxito
improvável. Oito anos depois, o direito de a mulher interromper a
gestação nesse caso tornou-se senso comum”.
Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2012